7 de outubro de 2010

A casa das sete mulheres




Revendo velhos arquivos e velhas escritas encontrei as anotações que fiz quando li o livro "ACasa das Sete Mulheres", da gaúcha Letícia Wierchowzki. Pois é quando leio algum livro tenho o hábito de anotar frases ou pequenos textos que goste, o livro todo é ótimo, como a minisérie também foi, mas longe de Garibaldi r Manoela ou Rosário e o caramuru, ou mesmo do amor de Bento Gonçalves pela sua Caetana, a parte que mais gostei era onde falava do romance da Mariana e do João Gutierrez, e abaixo segue o que anotei sobre isso:
Trechos de “A CASA DAS SETE MULHERES”

Na rua, o ar abafado a envolve, umedece sua pele. Ela pouco se importa. Contorna a casa vai pela sombra, quando sombra há, e segue para o galpão da charqueada. Sabe que agora os peões também descansam, aqui e acolá, sob a sombra das arvores, no quintal, no galpão dos animais, no curral. Essa não é a hora do trabalho nesse pampa assolado pelo verão. Há uma única pessoa na charqueada, e essa pessoa é João.
Mariana conheceu João faz pouco mais de um mês. João não está na guerra, não é caramuru nem farrapo, é peão de estância e bom violeiro. Foi Manuel quem o trouxe. E D. Ana precisava de braços para o trabalho, pois muitos peões foram para a campanha, estão lutando com os republicanos, estão morrendo por essas coxilhas a fora. João tem vinte e três anos e é muito moço pra morrer. Doma bem um cavalo, é bom de prosas, o pessoal da estância tomou-se de afeto por ele. À noite ele canta na beira do fogo. E é um homem bonito, alto de olhos castanhos e cabelos negros. Há alguma coisa de índio nos seus olhos oblíquos, e ele sorri como um gato. Esse sorriso foi a primeira coisa que Mariana viu. A segunda foi o toque morno daqueles dedos rudes. Sim, João logo a abraçou, assim que se cruzaram numa tarde perto da sanga, quando Mariana tinha ido levar Ana Joaquina a filhinha de Caetana, para tomar banho por lá. Ana Joaquina ficou brincando, quietinha, enquanto João e Mariana se abraçaram e se tocaram e se beijaram e venceram aquela fronteira misteriosa e escarpada. A menina não perguntou dos cabelos desgrenhados da prima, nem daquele rubor em seu rosto, nem reparou os botões mal arranjados do seu vestido um pouco sujo de terra.
Depois daquela tarde, viram-se amiúde. Na sanga, na charqueada, no capão. Mariana achou nos dias uma graça toda nova, e na solidão daquela estância o terreno perfeito para ver florescer seu amor. Combinavam seus encontros com a minúcia da paixão, esquivavam-se dos outros, mentiam, faziam render esses minutos roubados ao dia com uma ânsia semelhante à adoração. Mariana ganhou outro viço, encheu-se de alegrias, mas não contou desses amores a ninguém, nem à irmã nem à prima.
A porta do galpão range levemente quando ela entra. Os braços de João surgem das sombras e contornam sua cintura. O sol penetra pelas frestas da madeira, desenha arabescos no chão. Ela sorri, enquanto aquelas mãos famintas sobem para o seu colo, para o pescoço, para o rosto, e contornam sua boca, e desmancham as tranças do seu cabelo negro. Beijos salgados e urgentes.
Ai, Mariana, que não faço mais nada... solamente penso em usted. Minha Mariana.
A voz dele é um sussurro doce.
Faz calor, ele ri seu sorriso de gato, a pele morena de sol, os olhos cintilando aquele ardor de coisa jovem, de animal no cio. Mariana lambe o pescoço úmido, sente o gosto daquele homem com quem sonha toda noite, por quem espera e anseia e arde. Não existe mais nada lá fora, nem guerra, nem a casa, nem as tias, a mãe, as negras. Não existe nada e ela fará o que deseja, fará o que pede seu corpo tremulo. Seguirá aquele instinto que lhe nasce das entranhas, que nunca esteve em nenhum livro de oração nem na boca de nenhuma mulher de respeito, mas que vibra, pede, ordena. A vida corre em suas veias como um rio caudaloso que busca o mar.
Deitam no chão, há um cobertor velho estendido, ali se acomodam. As mãos de João são hábeis com os pequenos botões do vestido claro. A pele branca e perfumada dela vai surgindo como uma pétala, macia como uma pétala de flor mui formosa, e João se perde naquele caminho alvo, quase místico. Ele é feito de arestas, como ela é feita de maciez. Ambos buscam-se e desvendam-se e mergulham naquele oceano de toques e sensações. Lá fora, sob o sol do verão, o mundo dorme. (...)
No galpão da charqueada, sob o corpo de João , Mariana solta seu primeiro grito de mulher. Depois fecha os olhos. Desaguou no mar e está em paz.

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Um sopro de luz muito pálida alcançou seus olhos. No sonho, abria uma janela. A luz foi invadindo o sonho, aumentando, a janela transformou-se em porta, em fogueira. Abriu os olhos assustada. Sentiu o calor dele enroscado ao seu corpo, o braço forte sobre a sua cintura. O pelego envolvia a ambos como um abraço.
Mariana viu que amanhecia lá fora. Uma luz baça descia do céu muito claro. Pelas frestas da madeira, a luz entrava no galpão. Que horas seriam? O dia começava mui cedo na estância, e ela temeu ser vista ali, naquele pelego, enrolada ao abraço de João, de camisola, despenteada e pecadora. A mãe a mandaria ao convento, aquele lugar lúgubre, silencioso e morto.
- Ai meu Deus! – Deu um pulo. Ao seu lado João abriu os olhos confuso. – João já é dia! Preciso voltar para o meu quarto.
Ele sorriu ao vê-la, tão bonita, os cabelos negros soltos pelas costas, o rosto corado. Tinham se encontrado ali no meio da madrugada. Ela chegara enrolada no chalé, usando um poncho grosso sobre a camisola branca e delicada. Quando tocara em seu rosto, sentira-o frio e úmido do sereno. Um grande desejo de acalentá-la o envolvera. Passaram o resto daquela noite sob o pelego, mais felizes do que no céu.
- Vosmecê vai congelar aí, com essa roupa fina – disse ele, sorrindo – Devia por uma roupa.
Mariana obedeceu.
João também se vestiu. Colocou o pala por sobre o dorso nu, escondendo a musculatura bem-feita. O olho negro dele grudou-se nela. Ele sorriu. O sorriso felino e sensual.
- Vou embora, João. Después nos falamos. Minha mãe deve estar acordando e Manuela também.
- Usted devia contar tudo para ela. É sua irmã... Mais dia, menos dia, ela descobre mesmo. Usted quase nem dorme naquele quarto.
Mariana beijou-o. A boca úmida de saliva tinha um gosto de fruta, de coisa silvestre. Doía voltar para casa. Tomar o café com as tias, rezar, bordar, folhear um livro por horas, enquanto só fazia pensar nele, nos momentos que tinham repartido, nos deliciosos pecados cometidos.
- Ainda não, João. – Enrolou-se no xale. – Minha mãe anda mui estranha. Se souber de nós, se desconfiar, há de trancar-me num convento até que esta maldita guerra finde. Vosmecê não é exatamente o marido que ela sonha pra mim... Precisamos de tempo para contar a ela, quando estiver mais calma, mais serena. E eu não quero ir para um convento. Fui visitar Rosário, ela está definhando aos poucos. E vosmecê sabe que não gosto de rezas e ladainhas.
- Usted gosta é de mim. Dos meus carinhos.
Ele afagou-lhe os cabelos. Amava-a. Desde o primeiro momento, quando chegara na estância, trazido por Manuel, soubera que ali, naquela terra, havia algo esperando por ele. Soubera como num sonho.
Na primeira noite, tirara a viola do saco e fizera uma música de amor. Ficara horas sob as estrelas, olhando o pampa silencioso, e pensando no amor. Nunca tinha amado antes. Tinha conhecido umas chinas, uma donzela mui hermosa, uma castelhana viúva, mas tudo coisa passageira. Do amor mesmo nunca vira a sombra. No dia seguinte, temprano, tinha cruzado com Mariana na sanga. Não haveria de esquecer o ardor que lhe varara o peito, as carnes, a alma inteira. Depois daquele dia, ansiava estar com ela por todos os minutos.
Mariana saiu. Ele olhou-a da pequena janela. Logo Mariana estaria em seu quarto de moça rica, com as negras para servi-la e a mãe a lamuriar-se por isto ou aquilo. Para ele João Gutierrez, cabia a lida. O dia inteiro na faina, na labuta, trabalhando na estância, domando os potros. Sabia bem o seu lugar. Mas tinha se apaixonado pela moça rica, e viveria aquele amor, ali ou em qualquer outro pago. Sabia que D. Ana, que era boa e gentil com toda a peonada, se soubesse daqueles encontros, correria com ele da estância. Decerto mandavam meter-lhe uma bala nas guampas para silenciar o causo. Depois voltariam às missas, aos bordados. Ele sabia. Mariana era sobrinha do general Bento Gonçalves da Silva, o homem mais importante do Continente. E ele, ele não era nada. Filho de uma índia charrua com um uruguaio qualquer, criado naquele pampa para cima e para baixo, sem teto nem família. Era bom com a cavalhada, conhecia o chão com a sua palma, mas não era estancieiro nem fidalgo, nem cosa alguma que o valesse.
Acabou de vestir-se rapidamente. Um cusco começou a ganir ao longe. Na rua o ar frio despertou-o por completo. Ele foi para o galpão. Tomaria o mate com os outros, depois iria ver os cavalos. Pensava em Mariana, na sua pele alva, na luz dos seus olhos negros de longas pestanas. Amava-a. Se quisessem separá-los, faria qualquer coisa. Um desatino. Mariana era sua mulher. Deus tinha decidido aquilo. E ele acreditava em Deus.
O corpo dele é quente e vigoroso e bem talhado. O dorso moreno, iluminado pela luz fraca do lampião, cresce ante seus olhos, vai e vem, muito perto, até que o suor de ambos se misture, até que as peles se toquem e dividam o calor; depois afasta-se lentamente, naquela dança sensual e inquietante. O corpo de João entre suas pernas. Dentro dela.
Ela geme. O cobertor roça nas suas costas, excita-a. João em seu ouvido, com sua voz rouca falando coisas desconexas. João capturando sua boca para um beijo, aspirando o cheiro da sua pele, dizendo que a ama.
- Más que tudo, Mariana...Más que tudo.
Ela então fecha os olho. Entrega-se. É como uma explosão. Átomo por átomo, célula por célula, todo seu corpo se une nesse momento, alça-se, rebenta em mil fragmentos de luz. Agora é feita de puro algodão.
João em cima dela. Os olhos negros dele fitos nos seus. Ela se vê em suas retinas como num espelho. Ele descansa em seu peito, entre os seios, onde gosta de estar, onde vive o perfume dela, como ele diz.
A alvorada mal desdobra suas primeiras nuances. Ainda é quase noite, uma hora indefinida e mágica, e o mundo lá fora é puro silêncio.
- Meu irmão chegou hoje – fala baixinho.
João escorrega para o lado.
- Eu o vi.
Ela acarinha os cabelos negros e lisos, o rosto anguloso. Roça seus dedos na face sem barba. Ele é tão bonito...
- Pensei em falar com ele, João. Falar de nós.
João ri. Não um riso de alegria, mas de descrença. Um riso curto, talvez triste. As moças ricas não conhecem o mundo. Ele conhece o mundo. Antonio tem a alma voltada para a guerra. Uma guerra onde os negros serão libertos. Uma república igualitária. Mas Antonio não há de querer a irmã casada com um indiático, um guasca. Existem barreiras intransponíveis nesta vida.
- Usted vai perder tempo Mariana.
- Mas Antonio pode resolver tudo, falar com a mãe. Arranjar nosso casamento.
- E que cosa usted le dirá? Que nos deitamos juntos já faz tempo? Que me ama? Acha que isso será o suficiente? Usted disse que não contaria nada a ninguém por enquanto. Que tinha medo... – Beija a testa alta e bem desenhada – Pois preze esse medo, Mariana. Seu irmão não vai gostar de saber sobre nós.
Ela sente os olhos úmidos. Esta cansada de fugir à noite. De viver um amor de segredos. Ultimamente tem medo de morrer dormindo, longe de João. Tem medo de tudo.
- Mas o que faremos, João? Até quando ficaremos assim?
- Vou pensar em alguma coisa, Mariana. Le prometo. As cosas terão bom termo, por Dios. Mas hay que ter calma.
Deitam-se no cobertor. Lá fora as primeiras luzes de uma alvorada clareiam o mundo. Um galo canta ao longe. Mariana sente angústia em seu peito como um presságio.
- Tenho medo, João.
Ele a abraça.
-Não hay o que temer, mi amor... Vai dar tudo certo.

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